sexta-feira, 6 de abril de 2012

Corpo e Nudez Indígena no Brasil Colônia

A Carta de Pero Vaz de Caminha, é um bom exemplo de como podemos compreender uma história do corpo, ou seja, uma história do modo como uma cultura olhou e procurou significar (dar valor, sentido e compreensão) ao corpo de outra cultura. Este documento histórico pode nos servir para narra a experiência do olhar dos portugueses sobre o corpo dos povos indígenas no Brasil. Uma fonte histórica que quando lemos e relemos ainda nos impressiona pela riqueza de detalhes que ela trás deste olhar europeu (neste caso o escrivão Caminha), bem como a experiência da alteridade cultural através das suas impressões acerca do outro.
Pela riqueza de conteúdo e agudeza das observações que a narrativa da Carta contém, ela nos permite diversas interpretações e releituras. Um olhar histórico-antropológico sobre da Carta de Pero Vaz de Caminha, nos possibilita capturar a cultura do homem europeu do final da Idade Média e início da Idade Moderna, bem como esta cultura renascentista influenciou o seu olhar sobre os corpos dos indígenas registrado em sua narrativa de viagem.  
A Carta de Pero Vaz de Caminha é também o nosso primeiro documento que registra uma narrativa do olhar sobre o outro. É nesta carta que encontramos a narrativa de um olhar sobre o corpo dos indígenas que podem nos ajudar a pensar, por exemplo, que bagagem cultural carrega aquele que olha, observa e narra. O olhar narrado pode revelar muito pouco o que foi olhado e dizer muito mais sobre quem estava olhando. O olhar de Caminha sobre os corpos dos indígenas podem nos possibilitar compreender muito mais as opiniões que ele trazia do seu mundo cultural e muito menos o que ele tinha diante de si. Sua narrativa revela o quanto o seu olhar estava previamente armado por determinações sociais e mentais do seu próprio mundo cultural.
Sabemos que o escrivão Caminha foi um homem marcado pela cultura do seu tempo. Através de sua Carta é possível capturar a cultura mental aonde se percebe as influências do humanismo renascentista de sua época.  Embora influenciado pelo humanismo, o escrivão Pero Vaz de Caminha não se distanciou da forte cultura religiosa, ou seja, da mentalidade cristão-medieval tão presente ainda naquele período. E quando se trata de cultura religiosa podemos dizer que não houve um corte brutal e total entre a Idade Média e a Idade Moderna. O homem moderno e humanista oscilou o tempo todo entre a fé e a razão.
Contextualizar a cultural mental do mundo europeu do período das navegações nos ajuda compreender de que modo ela influenciou o olhar do escrivão Pero Vaz de Caminha em suas narrativas acerca dos indígenas. Neste caso aqui, o que interessa observar é de que modo à nudez do corpo dos indígenas proporcionou uma experiência da alteridade, em particular, aos dos corpos das mulheres indígenas.
Quando desembarcou na então chamada Terra de Santa Cruz, os portugueses recém-chegados ficaram impressionados com a beleza do corpo das mulheres indígenas. É preciso lembrar também o espanto e a curiosidade com que o escrivão Pero Vaz de Caminha descreve os corpos dos nativos da América portuguesa. Mesmo acostumados com as diferentes formas de corpos humanos (árabes, negros, judeus, indianos e orientais), no entanto, o corpo e os costumes do nativo americano se diferenciariam de tudo até então conhecido pelos portugueses.
A riqueza de detalhe com que Caminha relata em sua carta os corpos de homens e mulheres, bem como, dos costumes dos povos indígenas ainda nos impressiona. No que se refere às descrições detalhadas que ele faz aos aspectos físicos dos corpos das indígenas e a comparação feita aos homens e mulheres de sua terra demonstra bem em sua narrativa a alteridade do seu olhar. “Andam nus sem nenhuma cobertura. Não fazem caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas. E o fazem com tanta inocência como mostram o rosto" diz o escrivão.
Os corpos nus dos indígenas não escaparam à observação do narrador Caminha que em muitos momentos descreve de forma precisa e detalhada as formas anatômicas das partes íntimas do corpo feminino comparando-as as das mulheres da sua terra: “era tão bem feita e tão redonda a sua vergonha, [...] que muitas mulheres de nossa terra vendo-lhes tais feições, fizera vergonha por não terem a sua como ela".
A nudez do corpo feminino indígena, provavelmente, despertou a frota Cabralina muitas fantasias eróticas e lascivas dos marinheiros, pelo menos ao marinheiro escrivão tal nudez não passou despercebida em sua narrativa de viagem. As constantes observações que a narrativa de Caminha se refere à nudez das mulheres indígenas demonstra bem o quanto perturbador foi para ele estar diante de corpos totalmente diferentes dos das mulheres da sua terra natal. Eram corpos que traziam diferenças físicas, estéticas e morais.  

Outra passagem da Carta de Caminha que demonstra e reforça bem o quanto esta diferença físico-cultural do corpo feminino das índias perturbou o olhar do narrador é quando ele afirma em sua narrativa: “[...] moças, bem moças e bem gentis com cabelo muito preto, caindo pelas espáduas abaixo, e suas vergonhas tão alta e tão cerradinhas e tão limpas de cabeleiras, que de as olharmos muito bem não tinham nenhuma vergonha".
Percebe-se aí o modo como o narrador Caminha olhou e observou de forma detalhada o corpo feminino das índias salientando os aspectos estéticos e físicos do sexo delas que pareciam ter, de maneira geral, uma aparência anatômica bem características dessas mulheres; nota-se o quanto a nudez deste corpo feminino despertou no narrador um olhar curioso, íntimo e perturbador.  

A nudez destacada em seus aspectos tão íntimo acerca dos corpos indígenas na Carta de Caminha parecia antecipar o confronto de alteridade cultural que historicamente iria se desenvolver entre os indígenas e os portugueses que, por sua vez, se desdobrariam em tantos outros confrontos de alteridade de ordem social, política e econômica.   
  Sabemos que depois de caminha tantos outros viajantes vieram para o Brasil e aqui narraram suas impressões acerca dos indígenas. Padres jesuítas, comerciantes, cientistas europeus que aqui estiveram procuraram olhar, observar e registrar suas opiniões sobre o que vivenciaram no Novo Mundo. E sabemos que o que mais chamou a atenção destes viajantes, em particular, os padres jesuítas do século dezesseis, foi a relação que mantinha o índio com o próprio corpo. 
No que diz respeito às narrativas destes homens europeus que aqui estiveram, sobretudo, os jesuítas que procuraram descrever o que viram sobre os indígenas (e mais tarde sobre os negros); é preciso ter cautela e cuidado sobre tais opiniões que eles tinham sobre a nudez dos índios e o que estes faziam com os seus corpos. Ao insistir na nudez, estigmatizando-a, erotizando-a, pode exprimir antes o seu mal-estar perante a exibição do corpo nativo, e não um quadro real de frenesi sexual que acontecia na América portuguesa.
A luta dos portugueses em seu processo colonizador não foi só manter o domínio das terras e da cultura material dos povos ameríndios, mas também procuraram dominar a cultura imaterial que envolvia o campo moral e espiritual desses povos. O controle sobre a nudez dos povos ameríndios foi um desafio permanente que os colonizadores tiveram diante de si e por tudo que ela simbolizava para eles.   
Este controle sobre a nudez dos corpos indígenas revela aos historiadores um debate cultural fundamental: que mesmo sabendo que chegamos nus ao mundo somos logo adornados não apenas com roupas, mas com a roupagem metafórica dos códigos morais, dos tabus, das proibições e dos sistemas de valores que unem a disciplina aos desejos, a polidez ao policiamento.  
Ler e reler a carta de Caminha numa perspectiva de uma história cultural da nudez e do corpo nos permite compreender o modo como cada sociedade da a si mesmo o significado estético, sexual e moral ao seu corpo e nudez. Por outro lado, uma história cultural do corpo e da nudez pode também nos ajudar a entender o desdobramento de outros diversos confrontos que o contato intercultural promoveu na história dos diversos povos, pois com certeza, a nudez representou naquele contato intercultural um aspecto produtor daquilo que os antropólogos costumam descrever como choque cultura.



 

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